Sistematicamente tenho buscado representações sobre como conferimos significado ao tempo. Concluí que a arte de fazer poesias envolve o desejo de eternizar o efêmero. Vejam só este trecho da entrevista do grande antropólogo e mitólogo Joseph Campbell (1904-1987) sobre o Poder dos Mitos, concedida a Bill Moyers (http://www.culturabrasil.pro.br/campbell.htm):
“MOYERS: E por monstro você entende...
CAMPBELL: Quando falo monstro quero dizer alguma presença horrível, ou uma aparição, que abala todos os nossos modelos de harmonia, ordem e conduta ética. Por exemplo, Vishnu no fim do mundo aparece como um monstro. Lá está ele, devastando o universo, primeiro com o fogo e depois com um sangue torrencial que extingue o fogo e todas as coisas. Nada resta senão cinzas. Todo o universo e tudo o que era vivo nele fica totalmente destruído. É deus no papel de destruidor. Tais experiências ultrapassam julgamentos éticos ou estéticos. A ética é eliminada. Isso porque em nossas religiões, com a ênfase dada ao humano, há também um destaque para o ético; Deus é qualificado como bom. Não, não! Deus é horrível. Nenhum deus capaz de inventar o inferno pode ser candidato ao Exército de Salvação. Pense no fim do mundo! Mas há um dito muçulmano sobre o Anjo da Morte: “Quando se aproxima, o Anjo da Morte é terrível. Quando alcança você, é uma bem aventurança.”
Nos sistemas budistas, especialmente os do Tibete, os Budas da meditação aparecem sob duplo aspecto, um pacífico, outro colérico. Se você se apegar fortemente ao seu ego e ao seu pequeno mundo temporal, de mágoas e alegrias, querendo preservar uma vida desejada, aparecerá o aspecto colérico da deidade. Esta será terrível. Mas no momento em que o seu ego se desprende e se entrega, aquele mesmo Buda é experimentado como doador de felicidade.
MOYERS: Jesus falou sobre carregar uma espada. Mas não creio que ele sugerisse com isso que devêssemos usá-la contra o nosso semelhante. Ele a considerava no sentido de uma abertura do ego: Eu vim para libertá-lo, separando o ego que está amarrado em você.
CAMPBELL: Isso é o que em sânscrito é conhecido como vivekn, “discernimento”. Há uma importante imagem do Buda segurando uma espada flamejante bem no alto da própria cabeça. Para que serve essa espada? E a espada do discernimento, separando o meramente temporal do eterno. É a espada que distingue o que é duradouro do que é passageiro. O tique taque do tempo exclui a eternidade. É nessa dimensão de tempo que vivemos. Mas o que se reflete nessa dimensão é um princípio eterno, tornado manifesto.
MOYERS: A experiência do eterno.
CAMPBELL: A experiência do que você é.
MOYERS: Sim, mas o que quer que seja a eternidade, ela está aqui e agora.
CAMPBELL: E em nenhum outro lugar. Ou em qualquer outro lugar. Se você não viver aqui e agora, não irá consegui-lo no céu. O céu não é eterno, é apenas duradouro.
MOYERS: Não compreendo.
CAMPBELL: Céu e inferno são descritos como eternidade. O céu tem um tempo infindável. Não é eterno. O eterno está além do tempo. O conceito de tempo exclui a eternidade. Todos os sofrimentos e atribulações temporais vão e vêm, na direção dos fundamentos dessa profunda experiência da eternidade. Há um ideal budista de participação voluntária e jubilosa nas tristezas que ocorrem no mundo. Onde quer que exista tempo, há tristeza. Mas a experiência da tristeza movimenta-se na direção de uma tomada de consciência do ser duradouro, que é a nossa vida verdadeira.
MOYERS: Há uma certa imagem de Shiva, o deus Shiva, circundada por chamas, anéis de fogo.
CAMPBELL: É o esplendor da dança do deus. A dança de Shiva é o universo. Em seus cabelos há um crânio e uma lua nova, morte e renascimento ao mesmo tempo, o momento do vir a ser. Numa das mãos ele tem um pequeno tambor que faz tique-tique-tique. É o tambor do tempo, o tique do tempo que exclui o conhecimento da eternidade. Estamos fechados no tempo. Mas na outra mão há uma chama que queima o véu do tempo e abre nossas mentes para a eternidade.
Shiva é uma deidade muito antiga, talvez hoje a mais antiga imagem venerada do mundo. Há imagens de 2000 ou 2500 a.C., pequenos selos cunhados mostrando figuras que claramente sugerem Shiva.
Em algumas de suas manifestações ele é realmente um deus horrível, representando os aspectos terríveis da natureza do ser. Ele é o Togue arquetípico, que extingue a ilusão da vida; mas é também o criador da vida, seu gerador e iluminador”.
DA BUSCA
Rafael Cabral Cruz
Eu busquei uma única letra
que me trouxesse alegria
neste fim de dia primaveril.
Nesta busca incessante,
juntando letras e sentidos,
vi uma rosa que se abriu.
E, neste instante mágico,
uma gota de orvalho
caiu sobre meus olhos
embotados de jardins.
Nos confins da estrada,
construída com letras,
enfim,
encontrei um botão em flor.
Tão belo e tão efêmero
na sua mutante beleza.
Efêmera como a alegria
que na palavra busquei.
Que continuo buscando.
Viajando por caminhos
desconhecidos que plantei
em cada palavra sentida,
na lavra das letras sortidas
com as quais construo
minhas incertas sendas.
Em algumas esquinas,
deixo umas oferendas:
versos sofridos, chorados,
cantados ou soluçados.
Às vezes rimados,
Sempre sentidos.
Eu busquei uma única letra
que me trouxesse alegria
neste fim de dia primaveril.
Não achei.
Resta-me escrever estes versos,
eternizar o efêmero,
parar o tempo
e o doce salgado da lágrima.